“Passem a mensagem São Cristóvão mantém-se firme”

Amigos, Partilho uma obra e os seus processos (desenhos, fotos de atelier e galeria) que marca a exposição “Ouvir o musgo a crescer”, chama-se “Passem a mensagem São Cristovão mentem-se firme”. Claro que é um alusão directa às contingências actuais a que todos estamos sujeitos. Quando a pintei (Set/Out) já tínhamos todos assistido às histórias e imagens assustadoras vindas de Itália, às conspirações com e sem razão vindas da china e a toda a esquizofrenia americana. Interiorizámos que, pela primeira vez na história, tínhamos uma crise de todos em mãos, não esqueçamos a crise ambiental que poderia colocar no fim do século o Homem em situações muito particulares, caso as medidas alternativas em tantas línguas já anunciadas não tivessem sido colocadas em marcha. Existe um texto com o nome “Nas traseiras do meu atelier tenho um quintal que sussurra a evidencia do Mundo” que fala das possibilidades desta exposição, de propósitos das artes, da cidadania, da natureza do vírus, um texto que ainda não partilhei porque o texto “Muscinário…” de Boaventura de Sousa Santos eclipsou-o de tal modo na sua beleza que o fui adiando, a propósito este do Boaventura já o podem consultar no meu site na secção dos textos. Seja como for o texto a publicar, tal como a exposição servem para resgatar o melhor de nós, servem sem dúvida alguma de elogio ao Simbolismo e a todos os gestos de resistência e caridade que conseguimos ter perante qualquer caos instalado. Portugal é noticia em todo o mundo, por vezes não pelas melhores razões, mas na maioria das vezes o nosso esforço é positivo é mais do que evidente, dando-nos uma boa margem de orgulho. Então não esqueçamos aqueles Sísifos em cenários de guerra e que também são humanos com grandes e maiores hipóteses de se esgotarem… médicos, enfermeiros, bombeiros… um elogio também àqueles que conseguem estar isolados de tudo e de todos e que também sabem qual o sabor do quão de penoso é esse isolamento, contra natura. Avancemos então, “Passem a mensagem São Cristovão mentem-se firme” surgiu depois de reunir indagações destes cenários, junto da imagem do Papa Francisco nas suas duas visitas, peregrinações que fez em Roma, visitando o Sto Crucifixo na igreja San Marcello al Corso que fez procissão nas ruas de Roma aquando do fim miraculoso da peste de 1522. Reti que o papa passou pela carismática Via del Corso, outrora com o nome de Via Láctea e existia ali na altura uma porta (Arco di Portogallo) em honra de um Português conhecido por Cardeal de Alpedrinha que chegou a ser eleito papa no séc. XIV tendo declinado ao cargo. Seja como for, o papa pediu pelo fim do vírus, todos as histórias difíceis capazes de listas intermináveis o exigem, procuramos um mundo novo porque o fim destes tempos não chegam. Agarramo-nos com força à imagem das pessoas que recuperam e saem dos cuidados intensivos com vida, aliás são inúmeros os casos de pessoas idosas a conseguirem tais proezas. Estava a pintar e não me saía da cabeça o famoso “São Cristovão” de Bosh, as inúmeras e virtuosas pinturas europeias de cenas de caça, tanto de horrendas como de belas, se pensarmos na resistência dos coelhos, perdizes e veados e ainda nos fundos magistrais de natureza radiante… não posso deixar de lembrar a minha obra muito idêntica a esta “Amordaçando a própria pátria” que tal como aquela mostram a maior resistência do Povo Português de Berço Europeu e de Famílias ancestrais provenientes de todo lado e por todo o lado estão. Somos fortes, fazemos parte da grande União dos Cardumes, Avancemos!! (Ap’Arte Galeria de Arte Contemporânea)

“Um caixilho de guarnecer gerações”

Amigos,

A escultura “Um caixilho de guarnecer gerações” que fiz para o Piódão permanece ali, naquele espaço único e maravilhoso , pacientemente aguardando a nossa visita, o nosso deslumbre sobre este local único. Dante dizia que “a beleza reside nos olhos daquele que observa”, nesta paisagem toda a experiência sensorial que nos permite a vida. Esta obra sussurra, emoldura sem aprisionar, pequenos milagres a que podemos chamar Vida. Partilho aqui imagens dos processos, desenhos, maquetas e pequena memória descritiva para que possam ter acesso às motivações e propósitos desta obra, que é de todos e serve sobretudo para homenagear de um modo atemporal as pessoas do Piódão e Serras circundantes.

“Um caixilho de guarnecer gerações”

Xisto e Aço Corten, 2020

Esta obra exalta os socalcos, degraus e muros que serpenteiam as várias vertentes do Piódão. Funciona como um documento vivo do que foram e para que serviram tantas formas de xisto esculpidas na paisagem, tantas vezes galgadas e habitadas por homens e animais. Com a integração da moldura rotativa, por onde o observador contempla simbolicamente o Piódão, amplia-se este convocar do passado e as aspirações do que se pretende deste cenário único para o Futuro.

É uma varanda, uma cadeira e sobretudo uma janela para a contemplação da Natureza, da marca do Homem arcaico e contemporâneo na paisagem. O Xisto que compõem o corpo desta obra, foi outrora chão da antiga praça principal do Piódão. Imaginem-se então, a partir daqui, todos aqueles que o percorreram com o seu próprio andar. Tanto Homens como Animais, mas também podemos e devemos pensar em todas as formas de abrigo, sustento e coisas tão particulares como a neve, a geada, o musgo a crescer e o sol ardente espelhado nas superfícies maravilhosas deste local excepcional.

“Ser Montanhoso”

Amigos,

Partilho convosco a escultura que fiz para a Maravilhosa aldeia do Piódão em Portugal. Partilho aqui imagens dos processos, desenhos, maquetas e pequena memória descritiva para que possam ter acesso às motivações e propósitos desta obra, que é de todos e serve sobretudo para homenagear de um modo atemporal as pessoas do Piódão e Serras circundantes.

“Ser Montanhoso”

Bronze e Aço Corten, 2020

Esta peça convoca a simbiose simbólica que se estabelece entre a Natureza e o Homem. A história de superação e resistência desta região fez-se sempre de mãos dadas com a convivência da natureza, nomeadamente a dos animais, muitas vezes usados como fonte de alimento, mas também como utensílio para os trabalhos árduos de cultivo e construção. É por isso que vemos um ser com membros ou patas de vários animais. Adivinha-se na escultura uma pata de cabra, outra de burro, ovelha e boi.

Se nos comovem os socalcos no Douro imaginando o esforço do Homem e dos animais nas suas vivências, como seriam as desta região, nestes socalcos de encostas íngremes de invernos nevosos seguidos de verões rigorosos? É aos titãs que aqui viveram que esta peça faz homenagem, àqueles que nos deixaram este presépio para a contemporaneidade.

No dorso deste estranho animal vemos metaforicamente representadas escarpas e montes. Surge no topo o casario do Piódão de um modo estilizado, que por sua vez, pode exemplificar tantos outros locais do concelho. A ondulação da crina da cauda deste “Ser montanhoso” representa os trilhos naturais dos rios e ribeiras sinuosas da região. O modo como o Bronze foi trabalhado expande esta ideia de riacho. Quem se aproxima da obra vê que o trilho sinuoso da água está evidenciado pelo dourado resultante do polimento intencional do bronze, que brilha de um modo particular de acordo com as diferentes horas de luz do dia. A base é constituída por Aço Corten. A sua fisionomia assume um corpo alongado, com linhas e vértices que se referem às cordilheiras das serras envolventes. Conta-nos esta geometria simbólica que “o cavalo montanhoso” as galgou, exaltando os valores atemporais da região: Beleza, Superação e Resistência.

“Ao Artur Cruzeiro Seixas: Eis a nunca última carta”

Sou muito amigo das palavras e apesar de estar longe da dimensão de todos os seus pesos, tenho muita facilidade com elas, sobretudo quando se trata de partilhar coisas úteis, ou pelo menos que servem a tanta gente para lá do espaço confinado do atelier onde toda a prática artística acontece. No entanto ando bastante atrapalhado desde domingo passado, quando toda a energia poderia fluir em texto, é muito difícil escrever sobre o Cruzeiro Seixas.

Como tantas pessoas que lhe eram chegadas, tenho o privilégio de muitas memórias de facto memoráveis, não pelo seu conteúdo de circuito fechado de uma amizade que se fez de visitas regulares, colaborações, trabalhos, refeições, tristezas e alegrias, mas naquilo que o Artur ficaria muito feliz se soubesse que eu citaria agora a propósito da sua generosidade e serviço. Generosidade por tudo aquilo que nos deixou, sempre de uma simplicidade intrigante, fosse pelo modo de estar e acolher, fosse enquanto revolução e superação de todos os sistemas normativos, onde a arte não é exceção. Acho que é esta a grande responsabilidade a quem pretender continuar na senda da sua memória e legado: Generosidade, Amizade e Serviço. O Artur era o Artista por excelência da criação de mundos onde todos, claro que cada um à sua maneira, poderiam viver, sem muitas vezes isso confessarmos.

Reparei no olhar de muita gente que o rodeava, na vontade atroz e muitas vezes terrível de possuir esses mundos. Mas e sobretudo, reparei naqueles que fruíam a sua arte sem o quererem perturbar, e elevaram a experiência artística na sua melhor forma que é a da verdadeira utilidade que se expõe em forma de maravilhamento, intriga e espanto por vezes mesmo espiritual, onde a obra supera o próprio criador que a gerou. Não entrarei em detalhes técnicos de surrealismo, até porque se trata bastante aborrecido circunscrever o Artur a essa dimensão. Prefiro recordar e difundir as suas sentenças simples e inesperadas, tão fortes quanto os seus desenhos: “tantas Universidades e o horror alastra no mundo” ou “eis o progresso, implementar em todas as Universidades a disciplina da Sensibilidade”. 


De tantas visitas e colaborações que fiz e da convivência com a minha família ficam memórias deliciosas que valem a pena partilhar, e a seu tempo partilharemos. Para já prestemos a devida homenagem e para futuro que fique a honra para as práticas artísticas contemporâneas de poderem citar o seu mundo, quando se quiser falar de partilha, simplicidade, excelência e gratidão. Tudo lugares onde se superam horrores e nascem os mais belos sonhos.

Uma foto, um jardim, um diospireiro, nuvens acasteladas é o Artur está aí está bem vivo e eis as inúmeras vezes que o poderemos visitar.

“Dilúvios e a sua Sagrada Geometria”

 

Dilúvios e a sua Sagrada Geometriadetalhe mario vitoriamario vitoria

Em “tempos de pandemia” são inevitáveis as significações simbólicas que a minha prática artística lhes dedica. Se tenho vindo a falar de questões de resistência, superação, emancipação, ecologia, dignidade remetendo-me ao questionamento das suas antíteses, como é que a tempestade do vírus não se interliga com todos estes sentidos?

Com este trabalho circunscrevi algumas latitudes que o tema da Água coloca em curso. E são imensas, já que a Água convoca todos os credos e culturas. As tormentas, anseios e realizações da humanidade estão profundamente ligados a esta substância, não havendo mistério maior do que a atracção que exerce em todas as matérias. Seja como for, interessou-me sublinhar a Água enquanto símbolo universal de origem e  fertilidade[1].

Esta obra junta cosmologias e cosmogonias. De resto, afirmo constantemente que o sonho está para a realidade, tal qual a questão intrigante “o que surgiu primeiro o ovo ou a galinha”?

Se por um lado, comento o lado integral e real desta substância, que através da ciência reclama uma cosmologia baseada na observação directa do mundo, revelando-nos um cosmos importante onde esta substância é elemento detonador de vida. Uma observação que se fez “sem recorrer ao sobrenatural”, tal como fizeram os filósofos Aristóteles e o denominado pai da Filosofia “Tales de Mileto”[2]. Por outro lado, reforço a dimensão da cosmogonia, onde a ordem simbólica das civilizações, crenças, meditações e como elas estruturam a nossa psique guiando à grande transformação da realidade do mundo envolvente, sustentando angustias e vitórias de quem tem sede.

Não é de espantar a importância que a Água tem no seio da religião cristã[3]. Aliás, são bastantes as alusões e associações a ela dedicadas. Atenda-se, por exemplo, à sua cosmogonia que relatado no livro do Génesis onde no “ princípio (…) a terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas”[4]. Na presente obra, o espírito da criação percorre também as águas. Todo o quadro é a exaltação deste elemento em várias crenças. Mas evidencia-se figura maior da nossa civilização ocidental que é Cristo, enquanto contacto e encarnação de Deus na terra,  representado na figura que se debate contra as tormentas de uma onda. Essa personagem despe as roupas diárias para se entregar a uma resistência, caminho, peregrinação. Com ela, convoco a imersão nas águas e o movimento sagrado que encontramos no Baptismo, aquele que depois de mergulhar nas águas submerge renascido, preparado para os demais mistérios da fé.

Qualquer lugar de peregrinação, ou de Baptismo tem por perto uma fonte de água, reservatório ou pia. São essas as funções das colunas na representação. Uma coluna na sua pia de topo recebe moedas de ouro a outra é no seu topo reservatório simples de água. Estas colunas para além de quererem simbolizar as fontes de diversas culturas, remetem-nos para as passagens bíblicas, como aquela em que Cristo se apresentou à Samaritana como sendo fonte de “água viva”[5]. Estes elementos arquitectónicos funcionam também como que uma balança sugerindo várias escolhas antes da imersão e entrada na restante paisagem.

No passado dia 10 de Junho de 2020, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Tolentino Mendonça no seu discurso referiu que “desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço”. Fazendo referência ao nosso maior poeta que há 500 atrás no seu célebre canto VI d’Os Lusíadas descreveu uma tempestade enfrentada pelos marinheiros, onde surgiam árvores arrancadas pelo vento. Tolentino usou essa imagem para afirmar que “as raízes, que julgamos inabaláveis, são afinal também frágeis e sofrem os efeitos da turbulência do mundo”[6] apelando a uma capacidade de regeneração dos povos, amplitude e abertura de ideias.

Esta personagem que leva o barco, mostra claramente o preservar da palavra que recai sobre uma árvore, e por extensão a dimensão crítica maior da contemporaneidade que é a ecologia. De “sentido português”, esse marinheiro pescador, atravessa as tormentas do mar protegendo a natureza, essências portanto. Ele desafia o oceano e seus dilúvios. Os dilúvios e a própria extensão e profundidade do mar evocam forças interiores, entradas complexas na psique da humanidade. Transversal a várias epopeias de diferentes credos, o mar e o dilúvio por ele originado, são histórias de destruição e renascimento. Não exaltam finais de destruição plena, eles funcionam como ciclos, a possibilidade de gerir o excesso. São elogio da transformação e movimento, a propósito “os mitos dizem-nos que a sobrevivência a um dilúvio depende da clarividência” evidenciando a migração interna e externa presente na construção dos espíritos.[7]

A trovoada surge constantemente associada à voz da criação, no cristianismo esta presença é bastante evidente e sugestiva, sobretudo o relato presente nos Salmos onde nos é dito que “a voz do Senhor ressoa sobre as águas, o Deus da glória impera nos trovões (…) O senhor sentou-se em cima do dilúvio , e estabeleceu-se como rei eterno”[8]. A trovoada, relâmpago, raio são faíscas da criação, são elas que derramarão chuva, fornecerão alimento à terra, aos animais e por sua vez ao Homem. A luz que do relâmpago sai ilumina a escuridão. Sobre esta mesma escuridão que se ilumina progressivamente, surgem os traços evidentes de construção desta pintura, nomeadamente os da perspectiva das colunas que são intencionalmente direcionados para o clarão do relâmpago. Trata-se da “sagrada geometria”, que iluminou e ilumina o Homem de um modo bastante particular. Ela é amplitude das ideias perante a escuridão dos dilúvios,  um convite à viajem, um sentido expandido e metafórico de navegação

Manifestei-a a Lua, neste contexto, como um ”olho” observador e omnipresente. Esta intenção nasce da interpretação do facto da lua comover todas as formas de existência do planeta, onde os ciclos dos mares, agrícolas e da transformação são-lhe inerentes. Aliás, ela é “a dona da humidade; dos líquidos da vida (…) rege os vapores húmidos que promovem o apodrecimento, a humidade que cai como a chuva e o orvalho, o fluxo e refluxo de todas as massas de água; o resultado favorável ou desfavorável de toda a Navegação”[9]. É ela que comanda o raio, que é libertação de carga energética positivas das nuvens que iluminam por sua vez todo o cenário.

Uma obra que com Água fala de Iluminação da psique perante os grandes desafios da contemporaneidade, que não são exclusivos dos nossos dias. Os nossos antepassados já percorreram estes mares, mas como Gaston Bachelard referiu, é impossível banharmo-nos duas vezes no mesmo rio[10], apelando para a urgência do tempo. Entidade que nos escapa por entre os dedos nas renovações cíclicas, o que fazer com esse bem precioso?

 

 

 

Mário Vitória, Vila Nova de Gaia Julho de 2020

[1] GHEERBRANT, Alain; CHEVALIER, Jean – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Editorial Teorema, 2010, p. 42

[2] DORIA, Miguel de França – O culto da Água, a Água do Culto. Lisboa: Epal, S.A., 1998, pp. 22-25

[3] Cf. Et al.- Aqva: Las Edades del Hombre. Valladolid: Fundación Las Edades del Hombre, 2016.

[4] Génesis, 1: 1-2

[5] S. João, 4: 10-14

[6] MENDONÇA, Tolentino cit in LOPES, Maria –

Tolentino de Mendonça: “Precisamos de uma visão mais inclusiva de todas as gerações”, Jornal Público 10 de Junho de 2020. Consulta online https://www.publico.pt/2020/06/10/politica/noticia/tolentino-mendonca-precisamos-visao-inclusiva-geracoes-1920134

[7] Et al. – O Livro dos Símbolos: Reflexões sobre imagens e arquetípicos. Koln: Taschen Gmbh, p. 50.

[8] Salmo 29: 3,10

[9] Et al. – O Livro dos Símbolos, Op. Cit, p. 26.

[10] BACHALARD, Gaston – Water and Dreams: An essay on the Imagination of Matter, Dallas, 1983.

Obsessões & Resistências

Não é de facto um esboço de Rodin,tinta da china sobre papel 14,2x19,2cm, 2013

Amigos este desenho “Não é de facto um esboço de Rodin”, tinta da china sobre papel 14,2×19,2cm, 2013)

marca o inicio da divulgação da minha exposição “Obsessões & Resistências” que inauguraria já no dia 18 de Abril na Casa Museu Abel Salazar.

Continuo na senda “A Arte lava a poeira dos dias” e como tal vou revelando aqui o trabalho de toda a equipa em torno da exposição, que esperamos todos que um dia se materialize. Até lá todos os modos possíveis de comunicação funcionarão para estarmos todos em rede e tirarmos o melhor partido das práticas artísticas. Nada melhor de que começar por partilhar aqui o texto do catálogo da Silvia Simoes, que fez a curadoria da exposição.

Abraço a todos e até breve:

Obsessões gráficas

Quer dizer este desenho de que escrevo: antes determinar, inventar ou figurar ou imaginar aquilo que não é para que seja e venha a ter ser.“
Francisco de Holanda
(Da ciência do desenho, 1571, p. 21)

Os trabalhos selecionados para esta exposição, são fundamentalmente desenhos preparatórios, desenhos de estudo para outros projetos do autor.

Esta seleção não foi por acaso. Estando esta exposição enquadrada no ciclo de programação “O desenho contemporâneo em diálogo com a obra de Abel Salazar” procurei no acervo do artista, desenhos de carácter mais operativo, desenhos que pensam e se pensam para um outro suporte e meio, e que por isso, são desenhos que não têm como objetivo primeiro serem mostrados. São desenhos íntimos, onde o autor fixa as suas deambulações, devaneios e apontamentos, que poderão ou não crescerem para um outro objeto, uma outra ideia.

Interessou-me mostrar os desenhos que se realizam num contexto de atelier, de quem explora e procura com o desenho novos caminhos, novas hipóteses onde se evidenciam práticas e processos de atuação. Os estudos e esboços apresentados ilustram esse campo operativo do desenho, e a importância no processo construtivo da obra, de quem, como o Mário Vitória, usa o desenho no seu processo de trabalho.

Este lado obsessivo “de pensar com o lápis na mão” visível no trabalho do Mário, está também muito presente nos desenhos realizados por Abel Salazar, que se auxiliou do desenho como instrumento para fixar e entender o mundo que o rodeava.

Com o propósito de estreitar este diálogo entre os artistas, foi proposto ao Mário Vitória uma seleção de desenhos do Abel Salazar. Não foram impostas quaisquer restrições nessa escolha. Todavia não deixa de ser curioso as relações de proximidade conceptual e gráfica que se conseguiu estabelecer entre a sua obra e a de Abel Salazar. Foram escolhidos doze desenhos organizados por cinco categorias, que nomeou de Sátiras, Animismo, Composições, Sísifos e Impulsos. Este processo de reconhecimento e envolvimento do artista na escolha dos desenhos do Abel Salazar, reitera o propósito do diálogo entre ambos os projetos artísticos, dando maior visibilidade aos caminhos percorridos pelos dois e revelando os pontos em comum.

A relação que se pretende estabelecer entre o trabalho destes dois artistas, vai para além dos temas ou assuntos pelos quais possam demonstrar interesse. É vontade deste projeto de curadoria estabelecer uma relação dialógica entre o trabalho de Abel Salazar e do Mário Vitória, salientando, não só a relevância, mas a pertinência destes mesmos desenhos na atualidade. Interessa perceber, que apesar dos tempos e os contextos que os distanciam, é possível criar diálogos e relações de similitude na forma de encarar o desenho, que atenta na criação de várias leituras que se pretendem pluridisciplinares e transversais.

É esse o convite que se faz ao publico desta exposição, encontrar pontos de diálogo entre a obra destes dois artistas que de forma compulsiva e criativa encontraram no desenho o instrumento ideal para se relacionarem com o meio, com a sociedade e a cima de tudo, com as suas próprias ideologias e ideais.

Sílvia Simões

(Curadora da exposição “Obsessões e Resistências”)

Este é o nosso tempo, o tempo da simplicidade

A chegada da misericórida e a sua magnânima simplicidade. MV

   Estamos na primavera, achei oportuno partilhar convosco a minha primeira consideração perante o novo vírus que a todos importa.

       As notícias chegam-nos constantemente carregadas de violência, mas sejamos justos também com as que são boas. Existe a maior importância em as reter, caminhar nas evidências positivas. É claro que estamos num cenário de guerra. Para algumas gerações (sobretudo as do último meio século) estamos perante um cenário novo e para outras, num nunca imaginável, já que os excessos contemporâneos provocam um niilismo muito particular nas sociedades cosmopolitas. Para todos os efeitos partilhamos globalmente um sentimento de medo e ansiedade, sabemos das escolhas que se fazem em Itália e em Espanha neste momento, escolhem-se vidas…… e sabemos que não deveria ser assim…parece que algo nos escapou.

         Todos nós, por estes dias, temos imensas perguntas a fazer. Na maioria das vezes, as questões sem respostas imediatas, empolam o medo e esse pode modificar o espírito.
É legítimo perguntar se houve mão humana na origem deste surto. Também é legítimo colocar hipóteses com uma certa correspondência de conspiração. Que Povo, política, regime…. está alguma equipa de ambientalistas extremos, cientista louco, por detrás disto? É legítimo convocar tudo nesta hora para qual ninguém estava verdadeiramente preparado. É legítimo convocar o carisma dos credos, as crenças místicas e religiosas, já que dobrámos o ano e estamos todos nos caminhos da quaresma.

        Para todos os efeitos o vírus sai cartograficamente dentro de uma máquina humana oleada pelo o hipercapitalismo, da oficina do mundo onde as atrocidades à dignidade humana e natural são constantes. Quantas vezes o mundo exigiu (ter) da China e a China respondeu com os seus ofícios?. Organizando-nos entre cá e lá (falo sobretudo de regiões do mundo chamadas de terceiro mundo) este sistema cresce, enriquece poucos, empobrece e escraviza tantos. Há muito que em todos os sítios do mundo faz-se um género de antítese anti-natural (a vida surge para a não destruição, apesar de cíclica e ter a morte como certa). Sabe-se e isso é uma conquista que deveria gerar efeitos, que não existe local no planeta que não pudesse ser o maior esplendor da evolução civilizacional e detentor de jóias naturais… não fosse a corrida desenfreada do aceleramento das civilizações que escraviza uns e protege outros.

         Este terror invisível que nos assola agora alastrou também para a nossa Europa que à muito luta para manter as suas estruturas. Uma Europa de título de grau civilizacional, que ainda não resolveu as atrocidades que gerou no Hiper-capitalismo e na não resolução do problema da Migração. Foi evidente como o homem mergulhado (na maioria das vezes, agrilhoado) nesta esfera de consumo e mercado global, altamente luxuoso e dedicado apenas a poucos cedeu e desvalorizou tudo o que aconteceu no oriente. Quis a todo o custo manter a ponte do comércio e dessa realização maior dos mercados.

        Pensemos (e é legitimo) num pai ou mãe que esteja em alto mar e sucumbe em plena água com os filhos nos braços. Nos seus últimos instantes o que ele pensou, de nós em margem seca? As atrocidades de guerra, sobretudo nos actuais campos de refugiados… o que pensam eles das nossas mega feiras financeiras que se hiperbolizam a partir de tantas produções em países dos quais partiram e outros ditos de terceiro mundo? Como estão aquela pessoas todas neste momento?
Todas estas questões são legítimas, entristecem-nos claro. Têm sido convocadas tantas vezes, por estes dias….

       Apesar de tudo, o propósito deste texto passa por desconvocar o confronto! Este é um tempo de nevoeiro, por isso não é tempo dedicado a ecos denunciadores e ofensas. A teia é espessa, complexa, estamos todos a vestir a pele de lobo e ovelha simultaneamente.
De sentimento convicto, este é o tempo que nos é dedicado. Mergulhados em tantas notícias falsas e outras declarações verdadeiras, que cruzadas entre si deduzimos que o amanhã mundial é incerto, muito incerto. Não existe consenso entre os líderes mundiais, porque deste vírus pouco se sabe. A única constante é entender que temos de estar isolados para travar este inimigo. Este é o tempo para sermos, mais do que nunca introspectivos. Este é o tempo de evitar as nossas proximidades físicas e de aumentar a nossa presença na vida uns dos outros. Tempo de estarmos mais unidos. É por isso que escrevo e me mantenho contactável.

      Estamos na primavera e ando aqui às voltas para eleger uma obra para vos dedicar… para celebrar a primavera… para elogiar as resistências… para quem já partiu… para quem vai ficar… não é fácil mas deparo-me com esta: “A chegada da misericórdia e a sua magnânima simplicidade” (http://www.mariovitoria.com/…/chegada-da-misericordia-magn…/). Deixo-vos um excerto do texto que acompanhava a obra no ano em que a criei 2016, parece-me oportuno por agora:

“(…) o tempo contemporâneo, não estará ele carente de simplicidade? Não estão as civilizações a necessitar de trabalhos maiores de frugalidade? O mundo precisa que os povos compreendam que o amor da criação se traduz na força e misericórdia por via da simplicidade. A propósito, perante a prepotência diária das grandes potências e poderes mundiais, o Papa Francisco pediu um desvio às “doutrinas complexas”, evitando a “duplicidade e mundanismo”. Segundo o mesmo, a “difusão da alegria do Evangelho está na simplicidade da Vida”. Tendo em conta este enquadramento, procurei criar uma representação que revelasse um Cristo, corpo e espírito de misericórdia. Um Cristo que caminhasse ao nosso encontro, oferecendo como solução para as feridas das nossas calamidades, a sua natureza. A força maior da criação chega numa carroça de madeira de ar bucólico. Sem rosto, a natureza por si, sem exuberâncias. Um trono em movimento que carrega a boa nova para o mundo. Trata-se da chegada da misericórdia e a sua magnânima simplicidade.”

     Estou em casa e sempre que possível, partilharei aqui a minha arte que pertence a todos. Houve eventos e exposições adiadas, vou mostrar aqui o que fiz entretanto para que o cancelamento não seja total, mas antes diferente e mais envolvente e não adiado. As minhas (por vezes) equivocas e (por vezes) oportunas artedevertências. E sempre que acharem que são necessárias visitem-me nestes canais (email, facebook, instagram, site e blog).

     O tempo está na totalidade dedicado à minha cara metade e aos nossos meninos. Brincamos todos e construímos sentidos de família. Rimo-nos, zangamo-nos e avançamos apesar de tudo esperançosos, nos ecos que vamos tendo de nós próprios e outros que procuramos. Desejamos o mesmo para vós. Não existirá tédio se realmente abrandarmos. Digam-me! Quem não tem coisas adiadíssimas em casa e mesmo dentro de si mesmo? Quem não tem telefonemas para fazer a amigos, familiares….? Quem não tem palavras de carinho atrasadas?

      É primavera, vamos avançar um dia de cada vez, nas evidências positivas, este é o nosso tempo!

Abraço apertado do vosso
MV

“L de Lello e de La Fontaine a partir de Gonçalo M. Tavares: Uma Selecção de obras”

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     O autor Gonçalo M Tavares convidou-me para uma conversa na Livraria Lello em torno da sua obra. O Gonçalo é um autor estimo imenso. Proporcionando-me momentos de leitura muito particulares. Sendo uma autentico detonador criativo, debruço-me na sua obra frequentemente. O tema escolhido para a nossa conversa foi o da viagem. Apontando-se inevitavelmente para “Uma viagem à Índia”. Uma obra literária que permanecerá sem dúvida durante muito tempo no meu baú das prediletas. Atendendo sobretudo ao enredos intrigantes que faz da personagem Bloom, entre outras, juntas tendem a um constante deslindar para a condição e âmago humano. Devo ainda sublinhar a criatividade da própria escrita e métrica presente na sua obra, um terreno subversivo e libertador que pode ser entendido como aquilo a que o autor chama de “escrita Bloom”.

     A Lello apresenta-se como um polo cultural da cidade que me acolheu em muito novo, o Porto. Para todos os efeitos é uma loja-livraria-farol da literatura, com o qual a minha obra se corresponde, ramifica e necessita simbolicamente.  A direcção da livraria lançou-me o convite, mais ao cineasta Luís Vieira Campos, para expormos obras na noite do evento que de algum modo circunscrevessem os mundos do Gonçalo.

       Assim, na Livraria Lello apresentei uma exposição com obras do meu acervo e outras inéditas feitas a partir da obra literária de Gonçalo M Tavares, sendo ele o autor que se homenageava na livraria no mês de Setembro de 2019.

    “L de Lello e de La Fontaine”, percorre o sentido alotopico, a ordem desviante que caracteriza o trabalho de Gonçalo M Tavares. Este título retoma a obra “Biblioteca”, onde a métrica de nomeação pertence a uma lógica de indisciplina, entre a razão e o delírio. Ali, na nomeação exaustiva do autor no meio de estranhezas sucessivas, sublinhei a letra “L”, procurando evidenciar ensinamentos aparentemente irreconciliáveis na tríade: Homem, Animal e Natureza.

“L (La Fontaine)

Um Homem cruzou-se com um animal e leu-lhe três fábulas para o ensinar.

Mais tarde um animal cruzou-se com um homem e deu-lhe três dentadas para o ensinar.

Mais tarde a Natureza inteira cruzou-se com o homem e com o animal e enterrou-os com três pazadas de terra para os ensinar.” (Gonçalo M Tavares in Biblioteca 2004)

    Estamos perante uma equação delirante (Lello + L de La Fontaine de Gonçalo M  Tavares + Mário Vitória) que carrega consigo perguntas. Cruzamentos de contacto entre a minha obra e a obra do Gonçalo M. Tavares, enquanto produtores de sentidos e conhecimentos desviantes. O encontro entre a prática artística e literária misturou mundos. Falámos da sua colisão, nascimento, vida e morte. Uma cartografia feita de vários limites, porque também estes viajam. Modificações na ordem das coisas, a porosidade de dogmas e paradigmas. Convoquei as sucessivas variações e densidade de nomes que a prática literária de Gonçalo M. Tavares coloca em orbita. Com a exposição de peças na Lello coloquei em circuito a eterna e conflituosa discussão sobre o âmago humano num mundo contemporâneo de coordenadas em constante mutação. É a discussão sobre o posicionamento do homem perante si e perante os Deuses que não querem mais aparecer, uma reflexão sobre o conceito de viagem. sobre um ímpeto interior que lhe é geometricamente paralelo pela sua constante migração e o incomensurável que é a Natureza que nos rodeia e intriga também.

 

pedaço que é já escolha e resgate de mundo abandonado.l lafontaineIMG_1402-2 3IMG_1431-2 2IMG_1456-2 2IMG_1460-2IMG_3166 2IMG_3225 2IMG_3226na lello

“As latitudes da liberdade nas práticas artísticas contemporâneas: Artivistas e suas Artedevertências”

Amigos
deixo-vos o convite para se juntarem ao ciclo de conferências o “Ser e a Liberdade”. A minha intervenção é já na próxima terça (9 de Abril, 2019) e tem como titulo “As latitudes da liberdade nas práticas artísticas contemporâneas: Artivistas e suas Artedevertências”. Conto com a vossa presença a partir das 18h30 no Castelo da Foz. Deixo-vos aqui o programa. Em breve partilho aqui a minha intervenção em Texts Dispersion
até lá AB

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Entrega Simbólica das obras “Geada atormentando as raízes mais profundas” e “Europa Raptando” à FEUC.

Amigos,

no passado dia 2 de Dezembro, dia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra procedemos à entrega simbólica das obras “Geada atormentando as raízes mais profundas” e “Europa Raptando”. Deixo-vos aqui algumas fotos do evento e o meu discurso/apresentação dos conteúdos das obras:

mario vitoria FEUC 7

Boa tarde a todos,

Parabéns à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra que hoje celebra mais um aniversário, fazendo o balanço dos seus esforços e conquistas relembrado as suas ações carismáticas. Um cumprimento a todos os presentes: Familia FEUC, Fundação Eng. António de Almeida, Directores e Reitores da Universidade de Coimbra. Um abraço aos premiados deste evento, e um especial à Directora da FEUC Professora Doutora Teresa Pedroso de Lima.

Estou aqui hoje, para proceder à entrega simbólica destas duas obras de arte que ladeiam este palco. Estou aqui hoje também a convite da Faculdade para desvendar um pouco os conteúdos destas obras e a pertinência da sua exposição e o seu acolhimento nesta casa. Para isto devo remontar em primeiro lugar, ao ano de 2014 aquando do Colóquio Internacional de Direitos Humanos “Epistemologias do Sul” em Coimbra organizado pelo Boaventura de Sousa Santos e o CES, onde desenvolvi uma exposição multi-espacial que se estendeu a diversos espaços da cidade, desde o Museu Nacional Machado de Castro, passando pelo Paço das Escolas da Universidade, até a diversas galerias e a Faculdades em particular a de Economia. Tendo sido a Faculdade de Economia um farol deste colóquio escolhi expor aqui três obras de maior relevância sobre o Futuro e sobre os Direitos Humanos: “Ícarus Inside” (no corredor exterior), “Geada atormentando as raízes mais profundas” e “Europa Raptando”.

(A direção da Faculdade presidida pelo Professor Doutor José Reis, mais os professores e antigos alunos no ano de 2015 reuniram esforços e adquiriram a obra “Icarus Inside” marcando simbolicamente o trajeto da Faculdade perante os dias desafiantes do mundo contemporâneo)

Tanto a obra “Geada atormentando as raízes mais profundas” como a obra “Europa Raptando” funcionam como chamadas de atenção para as calamidades do mundo. Querem ser “VOZ” de conceitos humanistas, ecológicos e daqueles que foram silenciados.

Vemos ao longo da representação escarpas feitas de rochedos gelados, apontando para uma superfície que requer cuidados se a sua crosta se quiser percorrer. A propósito o título “Geada atormentando as raízes mais profundas” deixa antever uma certa intriga, funcionando como um alerta. Esta leitura é imediata, sobretudo para um “beirão” como eu que sabe que “as geadas não chegam de todo às raízes mais profundas”.

Os rochedos que vemos aqui, guiam-nos à ideia de escarpa, convocando as duas obras de Leonardo “a virgem dos rochedos” que contêm em si, por sua vez, um simbolismo transversal a várias culturas ao longo dos tempos. O simbolismo de rochedo, no ocidente pela tradição cristã identifica-se como fonte de força e vida: é disso exemplo, quando no relato bíblico Moisés faz jorrar água do rochedo do deserto. Nos Salmos Deus é invocado como um rochedo. Na carta de São Paulo aos Coríntios, Cristo é identificado como um rochedo espiritual de onde verte a bebida de vida. Num dos cinco primeiros livros da bíblia encontramos um cântico de Moisés onde o mesmo refere “Ele (Deus) é o nosso rochedo e a sua obra é perfeita. Todos os seus caminhos são a própria justiça” (Deuteronómio, 32, 4). De um modo semelhante, a mitologia japonesa participa deste ultimo sentido de força e firmeza (Chevalier, Cheerbrant, 2010).

Percorrendo este fundo simbólico, resolvi criar rochedos gelados que apesar de geadas castigadoras, miraculosamente deles surge vida, como uma Laranjeira.

A laranjeira é símbolo de possibilidade, ela expõe-se aqui como um equivoco já que os citrinos não crescem em terras altas e geladas. A laranja como todos os frutos com muitos caroços é fruto de fecundidade. A título de exemplo, no Vietnam antigamente davam laranjas ao jovens casais, na china antiga dar laranjas a raparigas significava pedir as mesmas em casamento (op.cit).

O Cavalo de todos os outros animais, porque tem o destino inseparável e coincidente com o do homem, já que é veiculo, nave e montada. Ele é simultaneamente luz e trevas, simboliza por vezes o mal, mas é sobretudo símbolo das vitórias do bem. No último livro da Bíblia, no Apocalipse, o cavalo branco é símbolo final de majestade, Maomé é esperado na sua aparição num cavalo branco, Buda é muitas vezes representado com um cavalo, ou apenas a representação do cavalo simboliza-o. O cavalo é apesar de tudo a expressão do Poder. É por esta razão que tenho vindo a representar muitas vezes cavaleiros que viram as costas aos seus próprios cavalos, duvidando assim dos próprios alicerces que os entronizam, procurando nesse gesto novas perspectivas (exemplo da obra “Os súbditos da convenção”). Geralmente modifico a representação de monumentos e a estatuária equestre para propor novas leituras (exemplo da obra “A desculpa dos monumentos”), como neste caso em que o cavalo é o próprio cavalo, ou então o cavalo é o próprio alvo do cavaleiro que o montou, destacando-se aqui a ausência do cavaleiro. Apenas se mantém na representação a sua vara pertencente ao torneio chamado de Justa (jogo marcial da Idade Média séc. XI, onde muitos cavaleiros fizeram fortuna com estes eventos, enquanto muitos a perderam, ou mesmo a vida. A título de curiosidade, sabemos que Henrique II da França, por exemplo, morreu quando uma lança do seu adversário atravessou a sua viseira e a quebrou em fragmentos). Portanto, o sentido conotativo pretendido percorre este caminho, em que o cavalo que volta a si mesmo é o apelo à essência da vida única e rica de cada um, enquanto que a ausência do cavaleiro remete para a sua total presença, mas uma verdadeira e integra presença. Quando Gonçalo M. Tavares referiu numa das minhas exposições recentes que se tratava da “exposição da cabeça” acertou em cheio neste jogo de simbologias. É o prazer da ausência que estes seres especiais e amputados trazem para a representação. A força da omissão revela-se quando ela traz à presença as plenitudes das partes ausentes.

Ao centro do quadro vemos uma ampulheta. A ampulheta é símbolo do tempo, do seu escoamento, mas também significa a possibilidade, através da sua inversão. A ampulheta permite a inversão entre o cheio e o vazio, o baixo e o alto, o superior e o inferior. Em suma a possibilidade de inverter/modificar a nossa maneira de agir e ver. Neste caso a ampulheta tem as suas simbologias descentradas, ou ampliadas, já que a representei como um edifício de tipologia clássica, aparentemente estanque, que já não dá para inverter. Solidificou-se portanto na sua própria razão. Mas, apesar disso movimenta-se numa rocha vermelha que contraria a gravidade, levitando.

A exploração artística da leveza das rochas e da matéria devo-a ao surrealismo e à sua lição dos significados aparentemente irreconciliáveis. Neste enunciado, a ampulheta mostra o fim do escoamento, o termo de um desenvolvimento cíclico. O pássaro debruça-se sobre este fim cíclico para se poder alimentar. Portanto a ampulheta representada será o fim ultimo da nossa mente descolonizada, emancipada e livre de “geadas” para poder melhor abarcar o todo incomensurável.

A obra “Europa Raptando” é também ela, como costumo referir, uma “Artedvertência”, ou seja, uma advertência feita com os significados simbólicos da arte. “Europa Raptando” mostra uma superfície rochosa gelada apontando para a mesma intriga do quadro anterior, atraindo a simbologia de fertilidade duma laranjeira a terras altas e geladas.

Na representação central desta obra está uma figura feminina que se debruça sobre uma personagem recorrente nas minhas obras, denominada de “Criatura”. Pelo titulo e pelo puxão de gravata representado, apreendemos, que a figura feminina representa a Europa. Na tradição mitológica, difundida durante os séculos pelas artes, Europa foi sempre representada como vitima de um rapto. Europa era a filha de um rei Fenício, que foi raptada por Zeus até à ilha de Creta na Grécia. No ano de 2012, ano da criação destas obras, no auge da crise social e económica Europeia, explorei a fusão dos sentidos mitológicos com os do império contemporâneo a que eu chamo de “Hiper Capitalista”. Uma versão perversa do capitalista. Sublinhei coincidências entre o relato bíblico do Apocalipse , que foi revelado e redigido numa ilha grega (em Patmus) pelo apostolo João, quando para todos os efeitos a Grécia foi a face da crise económica, social e humana na Europa, obrigando-nos a todos que vivemos uma crise semelhante, a repensar os conceitos de solidariedade, austeridade, capitalismo e união.

Quando a Europa rapta neste quadro, colocando a auréola de santo à “criatura” de fato e gravata, quer proporcionar o reequacionar dos nossos alicerces. Quer denunciar o denominado de “Norte Global”, tão bem identificado pelo Boaventura de Sousa Santos e pela sua equipa CES – nomeadamente o projecto Alice. Norte Global, aquele que comanda os ditos países colonizados do sul, impondo as suas vontades, esventrando a identidade e a diversidade daquelas culturas denominadas por este de mais fracas e pouco sofisticadas.

Para o futuro acontecer e não um presumível apocalipse a Europa, em sentido metafórico deve mesmo raptar, ou então resgatar os seus fundamentos e alicerces originais.

Quis ampliar esta intenção trazendo para a representação dois animais: O veado e o unicórnio. O veado que é símbolo de fecundidade, associado aos renascimentos e ciclos de renovação da natureza. Significados frequentes na tradição cristã, muçulmana, nos índios das Américas, na mitologia clássica e oriental. O veado é também frequentemente associado à árvore da vida, tornando-se imagem arcaica da renovação; O unicórnio é símbolo também ele de fecundidade, poder, virtude e pureza. Na Idade Média tornou-se símbolo da encarnação do verbo de Deus no seio de Virgem Maria, ou dito de outro modo, a virgem fecundada pelo espírito santo. Esta ligação, mística e espiritual digamos que “alquímica”, atai o desenho de Leonardo Da Vinci, onde vemos uma jovem e um unicórnio junto a uma árvore onde ela o amarrou. Esta ligação (unicórnio e mundo feminino) surge também no famoso Códice H, ou “Bestiário” de Leonardo, onde o mesmo refere que o unicórnio abandona a sua ferocidade aproximando-se das donzelas que tanto o atraem, chegando adormecer nos seus colos e só assim os caçadores os conseguem apanhar. Para os alquimistas, entre os quais Lambsprinck (XVI), Veado e Unicórnio são símbolos de sabedoria e poder, a força da floresta e o contacto com o ouro Filosofal e a transformação interior (Alexander Roob, 2006). Portanto neste cenário, Veado e Cavalo são como o poder imenso da floresta e da natureza, eles funcionam como arautos deste acto, eles são símbolo de força e retidão, os pilares necessários para que as velas justas consigam colher os melhores ventos.

Existe aqui uma retórica da própria pintura. Os tons que escolho para representar determinados objectos ou figuras transportam amplas mensagens. Por exemplo, ao centro vemos uma vela de uma suposta caravela, é vermelha em analogia ao vermelho da bandeira portuguesa, simboliza também ela o sangue, não aquele derramado em batalha, mas antes o sangue vivo dos povos de Hoje e de Amanhã nas mãos dos líderes. Esperemos que na encruzilhada do rapto que aludo aqui, ou melhor, já na suposta solução de resgate onde os princípios humanistas e fundadores da dignidade e da justiça são os fios da conduta daqueles.

O Sólido geométrico donde a figura central se ergue remete para a mesma simbologia da cor, e em termos formais também estabelece fortes ligações com a iconografia da bandeira nacional. Este objecto de faces pentagonais cita as quinas e sobretudo a Esfera Armilar, na alusão às aventuras dos descobrimentos e conquistas. No entanto, aqui a esfera é transformada em sólido geométrico, apontando ao chamado espírito cartesiano e da razão exacerbada com que as civilizações do norte global se têm alicerçado. Trata-se de um apelo para um ponderar do espírito rígido da razão, ou um certo “depois de D. Sebastião”. Este sólido funciona como uma base pertinente que segura duas figuras que não são mais que um olhar atento para o futuro. De resto, o mastro da vela pintado a verde e representado como uma estaca naquele solo rochoso, assume-se como um pêndulo, revelando que toda esta obra é um exercício de escolha e de esperança.

Resta-me agradecer a vossa atenção simbolizando ao mesmo tempo a entrega oficial destas obras e a sua placa comemorativa à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra para seu espólio, agradecendo àqueles que apoiaram esta causa: A Sonae, a Clínica Dr. Rufino e ao Colecionador José Constantino Vázquez Lorenzo.

Muito Obrigado”

 

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